Introdução
A dependência química é um fenômeno complexo que afeta diretamente o cérebro e o comportamento do indivíduo. Para quem observa de fora, o comportamento do dependente pode parecer irracional ou até mesmo desprovido de sentimento. Contudo, compreender o que se passa na mente do adicto em uso é essencial para oferecer o suporte adequado e entender as dinâmicas emocionais que estão envolvidas.
O Pensamento no Estado de Uso
Durante o uso de substâncias, o cérebro do dependente é inundado por neurotransmissores como a dopamina, o que gera uma sensação intensa de prazer. No entanto, o sistema de recompensa do cérebro, após repetido abuso de drogas, passa por uma alteração significativa, e o pensamento do adicto começa a ser dominado pela necessidade de manter esse estado de prazer químico. A prioridade número um se torna a busca pela substância, e o pensamento é, muitas vezes, totalmente voltado para isso.
O dependente, embora tenha a capacidade de sentir, está muitas vezes em um estado de negação ou anestesia emocional. Como resultado, ele pode parecer insensível aos danos que causa a si mesmo e aos outros, algo que é exacerbado pela necessidade compulsiva de obter mais drogas.
Tem Sentimentos?
Sim, o adicto ainda sente. No entanto, as drogas alteram a forma como ele experimenta e processa essas emoções. A dor emocional pode ser mascarada pelo uso contínuo de substâncias. O desejo de evitar sentimentos negativos ou desconfortáveis, como culpa, vergonha ou tristeza, é frequentemente uma das razões pelas quais o dependente recorre à droga em primeiro lugar.
Os sentimentos estão presentes, mas o adicto tende a reprimi-los ou ignorá-los. Sob o efeito das substâncias, as emoções podem se tornar confusas ou distorcidas. Por exemplo, alguém que, em um estado de sobriedade, sentiria vergonha ou remorso por mentir ou machucar outros, pode não sentir a mesma intensidade dessas emoções enquanto está sob o efeito da droga.
“O uso da droga é um anestésico emocional. Ela temporariamente bloqueia as emoções mais intensas, mas quando o efeito passa, elas retornam com força total.” (SILVA, 2020).
Percebe o Que Está Fazendo?
De maneira geral, o dependente químico tem uma percepção distorcida da realidade. A droga altera o seu estado de consciência, e ele pode não perceber totalmente o impacto de suas ações enquanto está sob o efeito da substância. O autocontrole é significativamente reduzido, o que explica por que muitos dependentes tomam decisões impulsivas que, em um estado sóbrio, jamais tomariam.
No entanto, em momentos de lucidez ou até mesmo durante o uso, o dependente pode ter um vislumbre da gravidade de sua situação. Contudo, o ciclo de dependência é tão forte que a urgência de consumir novamente acaba superando qualquer percepção racional dos danos que ele está causando.
A falta de percepção plena das consequências de suas ações está intrinsecamente ligada ao funcionamento cerebral alterado pela substância, particularmente na região do córtex pré-frontal, que é responsável pelo julgamento e pelo controle de impulsos.
“O dependente sabe o que está fazendo em alguns momentos, mas o impulso químico para continuar usando supera qualquer raciocínio lógico que possa surgir.” (COSTA, 2018).
Tem Pudor?
O pudor, ou o sentimento de vergonha e autocensura, também pode ser afetado durante o uso de substâncias. Muitos dependentes relatam que, durante o período de uso ativo, sentiam-se imunes à vergonha ou às críticas. Este comportamento pode ser atribuído ao entorpecimento emocional provocado pelas substâncias.
A repetição constante de comportamentos que o indivíduo, em sobriedade, consideraria inaceitáveis, leva a uma dessensibilização moral. A necessidade urgente e avassaladora de saciar a dependência ultrapassa o que, em situações normais, seria considerado “vergonhoso”. Assim, é comum que o dependente passe por situações humilhantes sem manifestar o mesmo nível de pudor que teria antes do vício. Isso não significa que ele não tenha vergonha ou não reconheça o impacto de suas ações, mas, muitas vezes, a urgência do uso supera o senso de pudor.
“O vício corrói os limites morais e sociais. O que antes geraria vergonha se torna secundário em comparação à necessidade de consumir.” (ALVES, 2019).
O Processo de Recuperação e o Resgate da Consciência
O processo de recuperação envolve a reconexão com esses sentimentos e a restauração de uma percepção clara do que é certo e errado. Programas como os 12 Passos, amplamente utilizados em tratamentos de reabilitação, destacam a importância de reconhecer as falhas do passado, buscar a reparação de danos e, acima de tudo, restaurar a capacidade de sentir e lidar com as emoções de maneira saudável.
Um aspecto fundamental da recuperação é a aceitação de que as substâncias anestesiam o corpo e a mente, impedindo que o indivíduo sinta plenamente. A abstinência de drogas, junto com terapia psicológica, permite ao dependente resgatar sua capacidade emocional e, assim, processar as dores, alegrias, vergonhas e outras emoções com maturidade.
“A sobriedade devolve ao dependente a capacidade de sentir plenamente. A terapia ajuda a lidar com o que as drogas bloquearam por tanto tempo.” (PEREIRA, 2021).
Considerações Finais
Compreender o funcionamento da mente de um adicto em uso é crucial para oferecer o suporte adequado. Embora o dependente ainda tenha sentimentos e percepção, esses aspectos são severamente afetados pelas substâncias. A droga não apenas altera o funcionamento cerebral, mas também dessensibiliza o indivíduo em relação às emoções e ao pudor. O caminho para a recuperação, entretanto, permite que ele recupere sua capacidade emocional e, com o tempo, retome o controle de suas ações e percepções.
Referências Bibliográficas
SILVA, José. O efeito anestésico das drogas. São Paulo: Editora Vida Nova, 2020.
COSTA, Maria. Percepção e dependência: uma análise do comportamento impulsivo. Rio de Janeiro: Editora Saúde Mental, 2018.
ALVES, Ricardo. Vício e moralidade: como o uso de drogas afeta o comportamento ético. Belo Horizonte: Editora Social, 2019.
PEREIRA, Ana. Sobriedade e emoções: um guia para a recuperação emocional. Porto Alegre: Editora Esperança, 2021.